segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Confira na íntegra o discurso da Profª Giseli F. Gawlik no lançamento do livro Memórias Literárias

No dia 18 de outubro de 2019 foi realizado o lançamento do livro "Memórias literárias do Acampamento Buraco e Assentamentos de Rio Bonito do Iguaçu - PR". Naquele dia, a Professora Giseli Fiori Gawlik  emocionou a todos com suas palavras. Confira agora na integra o discurso da professora.

 DIA 18 DE OUTUBRO DE 2019
LANÇAMENTO DO 3º LIVRO DO COLEGIO ESTADUAL DO CAMPO IRACI SALETE STROZAK
Quero inicialmente cumprimentar essa mesa composta por apoiadores e parceiros desta escola e agradecer as pessoas que nos prestigiam e outras pelo apoio e contribuição ao nosso trabalho. E cumprimentando o Diretor do colégio Professor Rudison Ladislau, cumprimento os demais representantes da mesa -- representantes de entidades e associações. Aos presentes Educandos-autores, familiares e seus colaboradores, coletivo do colégio Iraci Salete Strozak, colegas de trabalho, amigos e comunidade em geral.
Agradeço imensamente por esse momento que é de profunda alegria. Estou lisonjeada pelas palavras de carinho, inspiração e respeito. Alegria também por fazer parte da família Iraci Salete Strozak que me acolheu e acreditou no meu trabalho.
Quando o ano de 2018 encerrou, jamais imaginei que estaríamos aqui vendo o livro concluído, pois ainda havia muita coisa por fazer. Isso só foi possível pela atitude de uma pessoa que passei a admirar durante a minha caminhada na educação. Professor Rudison: sem você não estaríamos aqui comemorando. Você proporcionou a realização do projeto e por isso sei que também está realizado, porque contribuiu muito com ele, tornando-o uma realidade concreta. Obrigada de coração!!! Agradeço a todos os envolvidos de forma direta no projeto das “Memórias literárias do acampamento Buraco e Assentamentos de Rio bonito do Iguaçu.” Pessoas estas muito importantes que citarei aqui.
Tudo iniciou com uma simples e tímida proposta na abertura do ano de 2018 de produzir textos para o Centro da Memória da comunidade que ainda estava no âmbito das ideias. Professora-pedagoga Terezinha Roxa assumia naquele momento a árdua tarefa de conduzir esse resgate da memória. No que a disciplina de língua portuguesa poderia contribuir? Com textos. Assumi então com ela o compromisso de realizar um pequeno trabalho de coleta de histórias, com as turmas dos 9 anos desta escola. Agradeço por ter me instigado a sair da minha zona de conforto e contribuir para a grandiosidade cultural que se tornou o Centro da Memória.
Nosso trabalho ambienta-se no ano de 1996, na maior aglomeração de pessoas que a história já pode registrar, cujo objetivo comum era ocupar e conquistar a terra com dignidade. Conhecido como o maior acampamento da América Latina, com mais de doze mil pessoas, equivalente a três mil famílias “O Buraco” foi o princípio da realização de um sonho em comum.
A opção pelo gênero textual memórias literárias e não depoimentos ou relatos, têm motivos. Primeiro porque meu encanto por esse gênero surgiu há mais de uma década, quando ainda iniciava minha caminhada na educação em um concurso nacional de língua portuguesa, em que tive o privilégio de ir a Brasília, onde conheci o nosso então presidente Lula. Experiência única que fez com que esse gênero textual passasse a fazer sentido no mundo contemporâneo, onde a história é esquecida e as conquistas menosprezadas por aqueles que não têm conhecimento delas.
A partir daí o gênero memórias me acompanha ano após ano em trabalhos concretos que contribuem com as comunidades das escolas em que trabalho, mas humildes, tímidos e que acabam sempre ficando no âmbito da sala de aula. O segundo motivo é que o gênero permite a interferência de quem escreve. Além de rememorar o passado vivido ou imaginado pelo personagem, o autor escolhe cuidadosamente as palavras como uma espécie de poetização do texto. E era isso que eu queria: a participação dos educandos no processo de recontar. Dessa maneira iria aproximá-los da história do lugar onde vivem, compreender o passado, entrelaçando suas e novas vidas com a herança deixada por gerações passadas. Resultando em um processo de união de pessoas que vivem em um mesmo lugar, mas em épocas diferentes, fazendo com que cada uma faça parte de uma mesma comunidade. Esse encontro se torna uma experiência humanizadora.
Preservar a história: essa foi a proposta para este projeto. Preservar uma pequena parte das experiências vividas no âmbito da luta, resistência e das conquistas dos trabalhadores rurais Sem Terra, que fizeram e fazem parte da história deste Assentamento na conquista pela Terra, pela Reforma Agrária e por mudanças sociais.
A proposta foi lançada e as turmas assumiram comigo o compromisso. Claro que no decorrer do processo foi preciso mostrar a eles a importância do que estávamos fazendo. Quando algumas entrevistas foram se materializando, eles perceberam a relação das perguntas que faziam, com as respostas e as histórias do lugar onde vivem, e as coisas começaram a fazer sentido. O foco das experiências era o acampamento “Buraco”, que resultou na constituição desse território. Sabemos que as provações e privações de quem viveu, jamais serão esquecidas, pois vidas foram marcadas profundamente porque a luta foi dolorosa/ cruel, portanto faz-se necessário que seja registrada para que não se perca no tempo.
Embora conhecedora de algumas pequenas partes da história de luta deste Assentamento, tive que ir me inteirando cada vez mais. Um personagem surgiu inexperadamente: Irmã Lia, como era conhecida. Nome de batismo: Hulda Francenes. Religiosa de formação pela igreja católica, era Integrante da Pastoral da Terra e foi designada a acompanhar as ocupações realizadas pelo MST. Foi uma surpresa quando soube que ela viria. Falei para os estudantes com entusiasmo, porque iríamos receber uma senhora de 85 anos para falar da história deles mesmos. Um ser espetacular que veio abrilhantar nosso trabalho com a mais admirável história de vida. O texto dela é o primeiro da nossa coletânea. Ela descreveu com muita sensibilidade as experiências vividas, nos emocionando a cada trecho escrito do texto. A narrativa com descrições detalhadas de sons, cheiros, cores, sabores e sensações das mais diversas, nos proporciona uma viagem no tempo.
A doação física e espiritual para com o povo desta Terra foi impressionante. Uma mulher forte, que acreditou, não teve medo e batalhou junto com o povo pela Reforma Agrária. Pessoa que diante das dificuldades encontrava caminhos para resolver os problemas como a brilhante organização que tinha juntamente com as mulheres do movimento para atender crianças, idosos e doentes. Imagens de dor e sofrimento estão presentes em sua história, como por exemplo, as perdas de crianças por causa da desnutrição. Em uma de suas falas diz: onde o povo encontra forças pra viver? Acredito que ela olhava para o “Buraco” e as coisas não faziam sentido. Todos ali estavam à margem dos direitos sociais, em um descaso tão grande, que doía na própria pele.
A narrativa nos permitiu conhecer dentro da história, outras histórias e outros personagens. Irmã Lia também nos falou de pessoas que lhe marcaram, como a senhora idosa, de mais ou menos 70 anos. Essa senhora lhe marcou muito pela coragem, pela disposição e pelo espírito de solidariedade. Ela estava sozinha no mundo, ninguém para chamar de família. Ficou impressionada porque ela não queria terra. Não havia sentido em ter. Disse que deixou a vida que tinha sem olhar para trás e veio apenas para ajudar. E realmente ajudou muito. Uma atitude tão humana diante de tantas injustiças que foi difícil de acreditar.
A entrevista que Irmã Lia nos concedeu foi em agosto do ano de 2018, organizada e escrita pelas duas turmas, parágrafo a parágrafo tentando manter a riqueza de detalhes. E faço aqui uso das palavras da nossa querida pedagoga Jucélia Lupepsa, que fez tão cuidadosamente a apresentação desse livro, para um convite a conhecerem esse texto: “Sua leitura contribui conosco para manter a utopia de que é possível transformar realidades e construir uma nova sociedade consciente e organizada a ponto de educar cada ser humano para uma vida plena e bonita.”
Com as memórias da Irmã Lia prontas, já era hora de partir para a pesquisa de campo. Cada educando do então 9 ano, a partir das orientações, saiu em busca de membros da comunidade para ouvir. Sim, era um trabalho de ouvir. Apenas. Um simples ato que hoje com a tecnologia e a correria do dia a dia se torna tão raro. Primeiramente a escolha era por alguém da sua família e depois da comunidade. Queria que eles tivessem intimidade com aquilo que era contado. Mas foi aí que surgiram novas histórias e achamos necessário não nos deter apenas nas experiências do acampamento “Buraco”, e momentos mais recentes, já da formação dos Assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire, foram coletados.
Os primeiros que chegaram com suas entrevistas vinham empolgados. Tive dificuldades para dar conta de atender quase 50 escritores principiantes, com orientações, ideias, correções, várias revisões e tudo aquilo que um professor de português sabe que precisa fazer para que se produza um bom texto. Eles foram fantásticos!!! Foi gratificante ver netos dando atenção aos avós, filhos que quase não tinham o hábito de conversar com os pais, tirarem um tempinho para rememorarem juntos a história. Alguns ficaram conhecendo vizinhos distantes porque souberam que fulano fez parte do Acampamento Buraco e foram atrás. Achei isso incrível vindo de adolescentes! Alguns envergonhados até. Eram visíveis alguns olhinhos brilharem de emoção ao socializarem aos colegas as suas descobertas. Por isso digo que vocês educandos, são as estrelas, realizadores dessa obra. Como foi fantástico ver a evolução de cada um. Vocês abraçaram a causa e foram à luta, assim como seus pais e avós fizeram, com objetivos diferentes, mas fizeram. Agradeço a cada um de vocês pelos momentos que aprendemos juntos!! Parabéns pela dedicação e competência!
Um papel muito importante tem os personagens dessas histórias, vizinhos, conhecidos, avós e pais. Afinal, as memórias são de vocês. Em suas falas percebe-se um orgulho impressionante de pertença a esse lugar. Acredito que não são desabafos, mas sim reflexões existenciais de uma vida de luta, de inquietações, que são necessárias. Rimos e choramos ao mesmo tempo. A cicatriz do sofrimento que marcou suas vidas está presente nos textos. A realização do sonho, de ter o seu pedaço de chão para poder plantar e sustentar sua família com dignidade... algo para dizer que é seu... nos emocionou.
O avô da Ketlynn, relembra com emoção: “Um fato que lembro e toda vez que conto me emociono é o dia da ocupação. Naquele momento senti como se fosse um recomeço, não só pra mim, mas para todos que estavam lá. Tudo a partir dali iria mudar.” Percebemos em suas lembranças como o sonho estava presente nas pessoas. O sonho de uma vida melhor, o sonho de ter o direito de ser feliz, o sonho de ter o direito de ser um trabalhador.
Lembranças de situações com crianças doentes sem atendimento médico, frio e fome são comuns nos textos. Mas diante de tanto sofrimento ainda existia partilha. “Vivíamos em situações precárias, mas mesmo assim compartilhávamos o pouco que tínhamos. Nos barracos havia muita fumaça, que não se dispersava, pois estávamos realmente em um buraco. Muitas crianças sofriam de problemas respiratórios. Nos dias de chuva e inverno nem todos tinham cobertas e agasalhos.”, conta seu Gomercindo no texto da Bianca.
Uma situação lembrada na maioria dos textos é o desprezo das pessoas. É visível o sentimento de tristeza quando lembram disso, de sensação de abandono e humilhação. Como a situação era precária os acampados relatam que suas roupas eram sujas, rasgadas e a aparência incomodava as pessoas que os tratavam mal. Confundiam com bandidos e não davam empregos. Infelizmente muitos tiveram que passar por isso. Percebe-se que o coração sangra ao proferirem essas palavras e a nós que ouvimos, um nó na garganta.
Mas rimos também porque apareceram histórias diferentes. Relato a vocês o texto da Isabela sobre um dia de susto como tantos outros. Não havia muita segurança, então o medo era constante. Qualquer barulho era sinal de alerta. “Uma arma caiu no chão e disparou. Todos pensaram que eram os guardas da fazenda e saíram correndo em direção à mata. Algumas pessoas se machucaram nas taquaras que encontravam pelo caminho. Um senhor que saiu correndo de seu barraco com seu netinho no colo, tropeçou em um toco e sem querer derrubou e prendeu seu pé em uma panela de polenta. No desespero ele continuou correndo com a panela no pé. Ao passar em uma ponte de um rio ele caiu na água com o neto no colo. E a panela. Outros que passavam correndo tiraram a criança, mas na pressa não conseguiam tirar o senhor da água. Um deles mergulhou e percebeu que o que impedia era bendita panela em seu pé. Por sorte conseguiram tirar ele da água.” E foram tantas outras histórias que nos marcaram. Agora elas estão aí, eternizadas para vocês conhecerem no livro.
Com todo esse rico material em mãos, foi uma corrida contra o tempo, tínhamos apenas quatro meses para desenvolver, revisar várias vezes e finalizar. Resumindo que tudo ficou em rascunhos. O título surgiu apenas este ano. Ele precisava contemplar e situar o leitor no espaço e no tempo.
Essa é mais uma conquista para a comunidade. Preservar a identidade do povo Sem Terra é guardar um grande tesouro as futuras gerações para que não desconheçam as dificuldades enfrentadas nesses anos de história.
Motivados pelo descaso, os camponeses do Movimento Sem Terra transformaram o acampamento em espaço de organização, mobilização e luta. A experiência de viver debaixo de uma lona, apenas com o sonho e a esperança de que tudo iria melhorar, foi a inspiração para o povo. Esperamos que a leitura desse livro também os inspire para a libertação e que “ela seja um ato de amor”, como diz Paulo Freire. Convido-os a serem leitores e quem sabe escritores de novas histórias.
Parabenizo os educandos-escritores pelo belíssimo trabalho realizado!! E digo que pela experiência que já possuem não podem deixar esse projeto parar. É apenas a primeira edição. Sejam audaciosos e continuem.
Agradeço aos nossos colaboradores da secretaria da escola pela simpatia, sempre proferindo opiniões positivas e em especial ao Lídio.
Aos colegas de trabalho que em suas horas atividade eu os incomodava para pedir opiniões.
Obrigada Tere, Jucelia e Sara pelo grande incentivo.
Aos organizadores do dia de hoje. Pessoas que não mediram esforços para que tudo estivesse perfeito.
Ao Ceagro e UFFS pelo apoio.
Parabenizo ao Rudison pela pessoa que és e gostaria de dizer que admiro muito sua paixão por que faz.
Parabéns as comunidades dos Assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire, pois a luta, resistência e conquista do povo trabalhador está aqui, neste chão.
Agradeço a Irmã Lia que hoje repousa em Curitiba. Sei que outras entrevistas com pessoas que fizeram parte desta história foram feitas, infelizmente a vida me levou para outros destinos e não pude participar, quem sabe futuramente.
Em especial agradeço a minha família, que nas horas que precisei recebi conforto.
Encerro com um recadinho especial que Irma Lia nos deixa em suas memórias: “Precisamos dar muito valor para as coisas desta Terra, pois ela é sagrada, é espaço de vida e dignidade“.
Obrigada! Professora Giseli Fiori Gawlik


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