No dia 18 de outubro de 2019 foi realizado o lançamento do livro "Memórias literárias do Acampamento Buraco e Assentamentos de Rio Bonito do Iguaçu - PR". Naquele dia, a Professora Giseli Fiori Gawlik emocionou a todos com suas palavras. Confira agora na integra o discurso da professora.
DIA
18 DE OUTUBRO DE 2019
LANÇAMENTO
DO 3º LIVRO DO COLEGIO ESTADUAL DO CAMPO IRACI SALETE STROZAK
Quero
inicialmente cumprimentar essa mesa composta por apoiadores e
parceiros desta escola e agradecer as pessoas que nos prestigiam e
outras pelo apoio e contribuição ao nosso trabalho. E
cumprimentando o Diretor do colégio Professor Rudison Ladislau,
cumprimento os demais representantes da mesa -- representantes de
entidades e associações. Aos presentes Educandos-autores,
familiares e seus colaboradores, coletivo do colégio Iraci Salete
Strozak, colegas de trabalho, amigos e comunidade em geral.
Agradeço
imensamente por esse momento que é de profunda alegria. Estou
lisonjeada pelas palavras de carinho, inspiração e respeito.
Alegria também por fazer parte da família Iraci Salete Strozak que
me acolheu e acreditou no meu trabalho.
Quando
o ano de 2018 encerrou, jamais imaginei que estaríamos aqui vendo o
livro concluído, pois ainda havia muita coisa por fazer. Isso só
foi possível pela atitude de uma pessoa que passei a admirar durante
a minha caminhada na educação. Professor Rudison: sem você não
estaríamos aqui comemorando. Você proporcionou a realização do
projeto e por isso sei que também está realizado, porque contribuiu
muito com ele, tornando-o uma realidade concreta. Obrigada de
coração!!! Agradeço a todos os envolvidos de forma direta no
projeto das “Memórias literárias do acampamento Buraco e
Assentamentos de Rio bonito do Iguaçu.” Pessoas estas muito
importantes que citarei aqui.
Tudo
iniciou com uma simples e tímida proposta na abertura do ano de 2018
de produzir textos para o Centro da Memória da comunidade que ainda
estava no âmbito das ideias. Professora-pedagoga Terezinha Roxa
assumia naquele momento a árdua tarefa de conduzir esse resgate da
memória. No que a disciplina de língua portuguesa poderia
contribuir? Com textos. Assumi então com ela o compromisso de
realizar um pequeno trabalho de coleta de histórias, com as turmas
dos 9 anos desta escola. Agradeço por ter me instigado a sair da
minha zona de conforto e contribuir para a grandiosidade cultural que
se tornou o Centro da Memória.
Nosso
trabalho ambienta-se no ano de 1996, na maior aglomeração de
pessoas que a história já pode registrar, cujo objetivo comum era
ocupar e conquistar a terra com dignidade. Conhecido como o maior
acampamento da América Latina, com mais de doze mil pessoas,
equivalente a três mil famílias “O Buraco” foi o princípio da
realização de um sonho em comum.
A
partir daí o gênero memórias me acompanha ano após ano em
trabalhos concretos que contribuem com as comunidades das escolas em
que trabalho, mas humildes, tímidos e que acabam sempre ficando no
âmbito da sala de aula. O segundo motivo é que o gênero permite a
interferência de quem escreve. Além de rememorar o passado vivido
ou imaginado pelo personagem, o autor escolhe cuidadosamente as
palavras como uma espécie de poetização do texto. E era isso que
eu queria: a participação dos educandos no processo de recontar.
Dessa maneira iria aproximá-los da história do lugar onde vivem,
compreender o passado, entrelaçando suas e novas vidas com a herança
deixada por gerações passadas. Resultando em um processo de união
de pessoas que vivem em um mesmo lugar, mas em épocas diferentes,
fazendo com que cada uma faça parte de uma mesma comunidade. Esse
encontro se torna uma experiência humanizadora.
Preservar
a história: essa foi a proposta para este projeto. Preservar uma
pequena parte das experiências vividas no âmbito da luta,
resistência e das conquistas dos trabalhadores rurais Sem Terra, que
fizeram e fazem parte da história deste Assentamento na conquista
pela Terra, pela Reforma Agrária e por mudanças sociais.
A
proposta foi lançada e as turmas assumiram comigo o compromisso.
Claro que no decorrer do processo foi preciso mostrar a eles a
importância do que estávamos fazendo. Quando algumas entrevistas
foram se materializando, eles perceberam a relação das perguntas
que faziam, com as respostas e as histórias do lugar onde vivem, e
as coisas começaram a fazer sentido. O foco das experiências era o
acampamento “Buraco”, que resultou na constituição desse
território. Sabemos que as provações e privações de quem viveu,
jamais serão esquecidas, pois vidas foram marcadas profundamente
porque a luta foi dolorosa/ cruel, portanto faz-se necessário que
seja registrada para que não se perca no tempo.
Embora
conhecedora de algumas pequenas partes da história de luta deste
Assentamento, tive que ir me inteirando cada vez mais. Um personagem
surgiu inexperadamente: Irmã Lia, como era conhecida. Nome de
batismo: Hulda Francenes. Religiosa de formação pela igreja
católica, era Integrante da Pastoral da Terra e foi designada a
acompanhar as ocupações realizadas pelo MST. Foi uma surpresa
quando soube que ela viria. Falei para os estudantes com entusiasmo,
porque iríamos receber uma senhora de 85 anos para falar da história
deles mesmos. Um ser espetacular que veio abrilhantar nosso trabalho
com a mais admirável história de vida. O texto dela é o primeiro
da nossa coletânea. Ela descreveu com muita sensibilidade as
experiências vividas, nos emocionando a cada trecho escrito do
texto. A narrativa com descrições detalhadas de sons, cheiros,
cores, sabores e sensações das mais diversas, nos proporciona uma
viagem no tempo.
A
doação física e espiritual para com o povo desta Terra foi
impressionante. Uma mulher forte, que acreditou, não teve medo e
batalhou junto com o povo pela Reforma Agrária. Pessoa que diante
das dificuldades encontrava caminhos para resolver os problemas como
a brilhante organização que tinha juntamente com as mulheres do
movimento para atender crianças, idosos e doentes. Imagens de dor e
sofrimento estão presentes em sua história, como por exemplo, as
perdas de crianças por causa da desnutrição. Em uma de suas falas
diz: onde o povo encontra forças pra viver? Acredito que ela olhava
para o “Buraco” e as coisas não faziam sentido. Todos ali
estavam à margem dos direitos sociais, em um descaso tão grande,
que doía na própria pele.
A
narrativa nos permitiu conhecer dentro da história, outras histórias
e outros personagens. Irmã Lia também nos falou de pessoas que lhe
marcaram, como a senhora idosa, de mais ou menos 70 anos. Essa
senhora lhe marcou muito pela coragem, pela disposição e pelo
espírito de solidariedade. Ela estava sozinha no mundo, ninguém
para chamar de família. Ficou impressionada porque ela não queria
terra. Não havia sentido em ter. Disse que deixou a vida que tinha
sem olhar para trás e veio apenas para ajudar. E realmente ajudou
muito. Uma atitude tão humana diante de tantas injustiças que foi
difícil de acreditar.
A
entrevista que Irmã Lia nos concedeu foi em agosto do ano de 2018,
organizada e escrita pelas duas turmas, parágrafo a parágrafo
tentando manter a riqueza de detalhes. E faço aqui uso das palavras
da nossa querida pedagoga Jucélia Lupepsa, que fez tão
cuidadosamente a apresentação desse livro, para um convite a
conhecerem esse texto: “Sua leitura contribui conosco para manter a
utopia de que é possível transformar realidades e construir uma
nova sociedade consciente e organizada a ponto de educar cada ser
humano para uma vida plena e bonita.”
Com
as memórias da Irmã Lia prontas, já era hora de partir para a
pesquisa de campo. Cada educando do então 9 ano, a partir das
orientações, saiu em busca de membros da comunidade para ouvir.
Sim, era um trabalho de ouvir. Apenas. Um simples ato que hoje com a
tecnologia e a correria do dia a dia se torna tão raro.
Primeiramente a escolha era por alguém da sua família e depois da
comunidade. Queria que eles tivessem intimidade com aquilo que era
contado. Mas foi aí que surgiram novas histórias e achamos
necessário não nos deter apenas nas experiências do acampamento
“Buraco”, e momentos mais recentes, já da formação dos
Assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire, foram
coletados.
Os
primeiros que chegaram com suas entrevistas vinham empolgados. Tive
dificuldades para dar conta de atender quase 50 escritores
principiantes, com orientações, ideias, correções, várias
revisões e tudo aquilo que um professor de português sabe que
precisa fazer para que se produza um bom texto. Eles foram
fantásticos!!! Foi gratificante ver netos dando atenção aos avós,
filhos que quase não tinham o hábito de conversar com os pais,
tirarem um tempinho para rememorarem juntos a história. Alguns
ficaram conhecendo vizinhos distantes porque souberam que fulano fez
parte do Acampamento Buraco e foram atrás. Achei isso incrível
vindo de adolescentes! Alguns envergonhados até. Eram visíveis
alguns olhinhos brilharem de emoção ao socializarem aos colegas as
suas descobertas. Por isso digo que vocês educandos, são as
estrelas, realizadores dessa obra. Como foi fantástico ver a
evolução de cada um. Vocês abraçaram a causa e foram à luta,
assim como seus pais e avós fizeram, com objetivos diferentes, mas
fizeram. Agradeço a cada um de vocês pelos momentos que aprendemos
juntos!! Parabéns pela dedicação e competência!
Um
papel muito importante tem os personagens dessas histórias,
vizinhos, conhecidos, avós e pais. Afinal, as memórias são de
vocês. Em suas falas percebe-se um orgulho impressionante de
pertença a esse lugar. Acredito que não são desabafos, mas sim
reflexões existenciais de uma vida de luta, de inquietações, que
são necessárias. Rimos e choramos ao mesmo tempo. A cicatriz do
sofrimento que marcou suas vidas está presente nos textos. A
realização do sonho, de ter o seu pedaço de chão para poder
plantar e sustentar sua família com dignidade... algo para dizer que
é seu... nos emocionou.
O
avô da Ketlynn, relembra com emoção: “Um fato que lembro e toda
vez que conto me emociono é o dia da ocupação. Naquele momento
senti como se fosse um recomeço, não só pra mim, mas para todos
que estavam lá. Tudo a partir dali iria mudar.” Percebemos em suas
lembranças como o sonho estava presente nas pessoas. O sonho de uma
vida melhor, o sonho de ter o direito de ser feliz, o sonho de ter o
direito de ser um trabalhador.
Lembranças
de situações com crianças doentes sem atendimento médico, frio e
fome são comuns nos textos. Mas diante de tanto sofrimento ainda
existia partilha. “Vivíamos em situações precárias, mas mesmo
assim compartilhávamos o pouco que tínhamos. Nos barracos havia
muita fumaça, que não se dispersava, pois estávamos realmente em
um buraco. Muitas crianças sofriam de problemas respiratórios. Nos
dias de chuva e inverno nem todos tinham cobertas e agasalhos.”,
conta seu Gomercindo no texto da Bianca.
Uma
situação lembrada na maioria dos textos é o desprezo das pessoas.
É visível o sentimento de tristeza quando lembram disso, de
sensação de abandono e humilhação. Como a situação era
precária os acampados relatam que suas roupas eram sujas, rasgadas e
a aparência incomodava as pessoas que os tratavam mal. Confundiam
com bandidos e não davam empregos. Infelizmente muitos tiveram que
passar por isso. Percebe-se que o coração sangra ao proferirem
essas palavras e a nós que ouvimos, um nó na garganta.
Mas
rimos também porque apareceram histórias diferentes. Relato a vocês
o texto da Isabela sobre um dia de susto como tantos outros. Não
havia muita segurança, então o medo era constante. Qualquer barulho
era sinal de alerta. “Uma arma caiu no chão e disparou. Todos
pensaram que eram os guardas da fazenda e saíram correndo em direção
à mata. Algumas pessoas se machucaram nas taquaras que encontravam
pelo caminho. Um senhor que saiu correndo de seu barraco com seu
netinho no colo, tropeçou em um toco e sem querer derrubou e prendeu
seu pé em uma panela de polenta. No desespero ele continuou correndo
com a panela no pé. Ao passar em uma ponte de um rio ele caiu na
água com o neto no colo. E a panela. Outros que passavam correndo
tiraram a criança, mas na pressa não conseguiam tirar o senhor da
água. Um deles mergulhou e percebeu que o que impedia era bendita
panela em seu pé. Por sorte conseguiram tirar ele da água.” E
foram tantas outras histórias que nos marcaram. Agora elas estão
aí, eternizadas para vocês conhecerem no livro.
Com
todo esse rico material em mãos, foi uma corrida contra o tempo,
tínhamos apenas quatro meses para desenvolver, revisar várias vezes
e finalizar. Resumindo que tudo ficou em rascunhos. O título surgiu
apenas este ano. Ele precisava contemplar e situar o leitor no espaço
e no tempo.
Essa
é mais uma conquista para a comunidade. Preservar a identidade do
povo Sem Terra é guardar um grande tesouro as futuras gerações
para que não desconheçam as dificuldades enfrentadas nesses anos de
história.
Motivados
pelo descaso, os camponeses do Movimento Sem Terra transformaram o
acampamento em espaço de organização, mobilização e luta. A
experiência de viver debaixo de uma lona, apenas com o sonho e a
esperança de que tudo iria melhorar, foi a inspiração para o povo.
Esperamos que a leitura desse livro também os inspire para a
libertação e que “ela seja um ato de amor”, como diz Paulo
Freire. Convido-os a serem leitores e quem sabe escritores de novas
histórias.
Parabenizo
os educandos-escritores pelo belíssimo trabalho realizado!! E digo
que pela experiência que já possuem não podem deixar esse projeto
parar. É apenas a primeira edição. Sejam audaciosos e continuem.
Agradeço
aos nossos colaboradores da secretaria da escola pela simpatia,
sempre proferindo opiniões positivas e em especial ao Lídio.
Aos
colegas de trabalho que em suas horas atividade eu os incomodava para
pedir opiniões.
Obrigada
Tere, Jucelia e Sara pelo grande incentivo.
Aos
organizadores do dia de hoje. Pessoas que não mediram esforços para
que tudo estivesse perfeito.
Ao Ceagro e UFFS pelo apoio.
Parabenizo
ao Rudison pela pessoa que és e gostaria de dizer que admiro muito
sua paixão por que faz.
Parabéns
as comunidades dos Assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos
Freire, pois a luta, resistência e conquista do povo trabalhador
está aqui, neste chão.
Agradeço
a Irmã Lia que hoje repousa em Curitiba. Sei que outras entrevistas
com pessoas que fizeram parte desta história foram feitas,
infelizmente a vida me levou para outros destinos e não pude
participar, quem sabe futuramente.
Em
especial agradeço a minha família, que nas horas que precisei
recebi conforto.
Encerro
com um recadinho especial que Irma Lia nos deixa em suas memórias:
“Precisamos dar muito valor para as coisas desta Terra, pois ela é
sagrada, é espaço de vida e dignidade“.
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